sábado, 14 de janeiro de 2017

Disputa coxinha x petralha nas redes é doentia e mata diálogo, diz filósofo

No lugar de uma esfera homogênea e lisa, um poliedro multifacetado. Foi essa a metáfora usada pelo papa Francisco, há três anos, para definir a humanidade no discurso em que falava sobre a importância de as pessoas respeitarem a pluralidade de opiniões. Na ocasião, o pontífice argentino se posicionava contra o nivelamento das ideias e de ações que acaba por excluir determinados grupos sob o pretexto de eliminação da diferença.
Para o cientista político Fernando Schuler, doutor em filosofia e professor no instituto Insper, em São Paulo, o poliedro também expressa a diversidade dos pontos de vista na internet, sobretudo nas redes sociais, que torna, de algum modo, qualquer um apto a opinar sobre o que bem entender --e sem os filtros de quem, antes disso, se presumia especialista em um assunto.
Segundo ele, é importante não confundir pluralidade com respeito à diversidade. Nessas mesmas redes está cada vez mais pulverizado um moralismo de costumes que elenca quais palavras, expressões ou piadas convêm ou não serem reproduzidas em um universo politicamente correto. Segundo ele, é preciso aprender uma nova diplomacia para o mundo digital.
Ele discorda da opinião de que o conservadorismo avança no mundo e cita a eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos para explicar sua posição.
"O próprio Trump nunca foi um conservador. Hoje o que se chama de conservador é bastante associado a um moralismo de costumes muito popular nas redes sociais. Há alguns anos, as visões sobre fatos históricos eram filtradas pelos intelectuais, pela academia. Hoje, as visões brotam, fluem diretamente nas redes", diz. "Não é correto confundir tradição política conservadora com o moralismo de costumes, traço popular que talvez tenha se pulverizado nas redes sociais e que trata de um moralismo do politicamente correto, com uma espécie de novilíngua que traz quais palavras se pode ou não dizer, ou que tipo de piada, por exemplo."
Sobre o racha político, agravado pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), diz que o mundo mudou: "É importante aceitar a ideia de que a sociedade é marcada pelo pluralismo, e o novo mundo quebrou essa cisão de esquerda e direita. Vale o poliedro mencionado pelo papa, e não mais aquela imagem da régua de esquerda e direita, que vai sendo substituída", afirma. "O embate 'coxinhas x petralhas', por exemplo: há algo mais doentio que isso, que só cria mais desaprendizado e falta de diálogo? Se queremos uma sociedade menos radicalizada, temos que começar pelo uso da linguagem --e na internet não é diferente", argumenta.
Vamos ter que aprender uma nova diplomacia no mundo digital, talvez com uma linguagem mais amena, no lugar de tanta ênfase
Fernando Schuler, cientista político
Para o estudioso, por outro lado, a própria multiplicação de blogs e de redes sociais, característica marcante do universo digital, é "uma das grandes fontes da instabilidade contemporânea".
"Temos sempre a sensação de instabilidade. Isso tem um lado imensamente positivo, que é a capacidade de as pessoas expressarem suas visões. Mas há a permanente sensação de conflito, de tensão, de tribalização, em que se tende a excluir quem pensa diferente", analisa.
"Isso requer das pessoas um novo aprendizado: vamos ter que aprender uma nova diplomacia no mundo digital, talvez com uma linguagem mais amena, no lugar de tanta ênfase. Estamos virando uma sociedade com uma legião de pessoas especialistas nas próprias opiniões."

Estado permanente de crise

Para Schuler, a percepção do aumento do conservadorismo no mundo abrange um simplismo que só dificulta a compreensão sobre as relações humanas. "Você pode ser uma pessoa muito liberal sob o ponto de vista dos costumes, mas conservador --muito avesso a liberdades--, por exemplo, sob o ponto de vista econômico, ou vice-versa", menciona. 
"Mesmo os indicadores sociais vêm apresentando melhoras expressivas no mundo inteiro, com uma redução dos índices de violência e de pobreza, um aumento de escolaridade e do número de democracias... Vivemos em uma época histórica de notícias muito positivas, mas também estamos constantemente sob o 'efeito breaking news', em que nossa percepção de mundo não acompanha esse momento --é uma percepção multifacetada graças ao efeito da informação. No mercado de informação, a má notícia tem mais peso que a boa --isso é um paradoxo do mundo contemporâneo", justifica Schuler.
Ele diz que há uma "percepção permanente de crise, de instabilidade". "Não é à toa que post-truth [pós-verdade] foi escolhida [pelo dicionário britânico 'Oxford'] como a palavra do ano. Como já dizia [o sociólogo e filósofo francês] Jean Baudrillard, o mundo virtual tomou de assalto o mundo real."
Paralelamente, o cientista político afirma que há riscos em se deixar tomar de assalto pelo que está nas redes, simplesmente, na forma de "opinião não fundamentada". "Porque a informação é rápida, e o custo para checar uma opinião --que vai se tornar obsoleta em poucas horas-- é muito alto. Por isso a regra geral deve ser sempre a de ter muito cuidado, qualquer que seja o aspecto ideológico. Na campanha presidencial americana, por exemplo, não há nenhum dado estatístico sobre de onde veio mais mentiras, porque, ainda que a maior parte da mídia tradicional tenha se posicionado a favor de Hillary Clinton, nas redes sociais aconteceu de tudo."
O estudioso recomenda "uma abordagem cuidadosa e pluralista" em relação à informação nas redes e cita o que ele chama de "caso clássico": a entrevista recente da futura primeira-dama da cidade São Paulo, Bia Doria, à "Folha de S.Paulo". "Ela recebeu uma espécie de 'apedrejamento' virtual ao expressar um padrão cultural distinto, que, embora a mim não agrade, é um direito dela. A gente tem que cuidar para não padronizar as opiniões", sugere, destacando que isso representa "cair na falácia dos extremos".
"A sociedade pode buscar consensos, mas é preciso aceitar as divergências, inclusive sobre os ritmos de aprendizagens. A sociedade detentora de direitos é marca do nosso tempo, mas, simultaneamente, precisamos desenvolver um espírito de tolerância cultural --e isso tem que ser aplicado a muitas faces do poliedro", avalia.
BOL

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